Xi’an / Bishkek 2013 (Mad'in China)
Quando entrei no aeroporto de
Lisboa, no dia 30 de Maio de 2013, numa meia tarde quente, sentia-me inseguro,
transportava comigo um enorme embrulho contendo uma bicicleta meio desmontada e o que eu
considerava ter de coragem, a metade bastante para tentar atravessar a grande
China pedalando.
Revelou ser uma tarefa para a qual ainda não me
encontrava preparado, a monotonia infinita do planalto tibetano e a paz que não
levava comigo no pequeno alforge, revelaram-se-me avassaladoras.
Perguntou um polícia quando entrei na área
internacional do aeródromo,
- qual é o seu destino?
respondi com vigor exagerado
– para a
China!
respondeu ele que para lá não iria de forma alguma
retorqui eu que sim, era sem dúvida alguma o meu
destino,
respondeu ele de novo,
- não há voos entre Lisboa e Pequim
Disse-lhe finalmente que faria escala em Istanbul e deixou-me
passar com um ar astucioso, peculiar em todas as autoridades de todos os
países.
- // -
Ao aterrar em Xi’an de madrugada, não supunha o
redemoinho de acontecimentos e contrariedades que este imenso pais me
reservava, aguardava-me o táxi que me haveria de levar ao “youth hostel les 7
sages”.
Chovia e as ruas pareciam encantadoramente Asiáticas
e fantasmagóricas junto daquele paredão escuro.
Xi’an parecia toda uma cidadela medieval
sequestrada por um colosso demasiado ocidentalizado de betão, alcatrão e ferro que era o continente Asiático;
mesmo o hotel, aproveitado das antigas cavalariças do corpo de elite das tropas
do imperador Xin, fazia recuar o tempo no interior dos muros da cidade, fora a China mostrava as verdadeiras cores, invicta e esventrada dos seus gloriosos
e ancestrais ídolos e sendo preenchida com a pestilência de um fumo horrível.
Pelo menos aqui falava-se inglês, se bem que tivesse
que me adaptar ao sotaque. Reconstruí a bicicleta no quarto, aos pés da
cama, tomei um banho quente e mais parecia um zombie ou uma máquina controlada
por piloto automático que repousava das 20 horas de jornada. naquele colchão rente ao chão e nos únicos lençóis
brancos de toda a viagem, nem os sonhos adivinhavam o meu futuro na China.
Sete da madrugada e pergunto na receção onde posso
adquirir um mapa de estradas Chinesas, uma imprescindível ferramenta, senão a
mais importante para continuar para Ocidente na direção do Deserto do
Taklamakan e do Quirguistão.
Apontou-me o mercado ao lado da estação não muito longe do albergue, para onde me
dirigi; aqui foi a primeira noção da
Ásia total que me envolveu nesta viagem, as ruas das prostitutas importunando
possíveis clientes, a fealdade dos becos
pejados de lixo, a pobreza extrema estampada nas feições mas na alma a nobreza própria de quem protagonizou a Historia da humanidade, respondiam sempre no
mesmo tom e repetiam as minhas palavras quando dizia que queria comprar um “Map
of China”, continuei durante cerca de uma hora questionando os transeuntes que
me pareciam saber algum inglês mas ingloriamente, nem um único termo
compreendiam nem um gesto, nada…
Dado Xi’An ser uma cidade construída dentro e em
volta de uma muralha quadrangular nada mais sensato me ocorreu senão seguir
junto ao muro, para Oeste, talvez isso me levasse de uma forma mágica, ao meu
destino próximo, a cidade de Lanzhou, pois nem o nome dessa ou de outras
cidades eu era capaz de pronunciar em Chinês.
Senti-me completamente perdido no meio do “smog” e
com uma vontade de voltar, de não estar ali, a alimentação futura não menos que
a fome atormentava-me, o mito ocidental, que os chineses comem todo o tipo de insectos e animais deixava-me aterrorizado tanto que durante este primeiro
dia decidi não comer nada para me habituar a ideia de me alimentar d’alguma
coisa.
Foi agradável a visão de postal dos campos
cultivados, das árvores beijando a estrada, dos praticantes de tai-chi nos
jardins, ao som de diferentes instrumentos e finalmente na rota que me levaria
ao Ocidente, a “Rota da Seda”
Havia pedalado pouco mais de cem quilómetros sem me
dar conta do “jet-leg” e da fome, pareciam mais pesadas as pernas e a
bicicleta, as pequenas subidas afiguravam-se a montanhas íngremes e a mochila
nas costas pesava como chumbo.
Um grupo de camiões, num dos muitos locais artesanais
de lavagem, fez-me pensar que talvez fosse bom tentar provar do acolhimento
deste povo, ao principio, riram-se dos meus gestos quando sugeri colocar a
bicicleta dentro da galera alta e vermelha de transporte de carvão.
Fiquei contente quando o condutor me levou pela
estrada, em ziguezague, sempre tentando fazer conversa, oferecendo-me tabaco,
comida ,bebida e o telemóvel onde a esposa ou a filha perguntavam com umas
tímidas palavras em inglês, para onde ia e o que estava fazendo na China,
inclusivamente parou junto das bilheteiras do exercito de Terracota do
imperador “Xin” para que o traduzissem questionando para onde ia eu, ficou com um ar de puro espanto quando lhes anunciei a pretensão de atravessar a China.
Mais tarde durante a viagem com cerca de 80 /100 km, pelas
minhas contas, mostrei a foto de família que trazia comigo e tive dificuldade
em fazê-lo entender que não era para oferecer, mas recordação da família que
transportava comigo quando viajava.
Como que era guardado pelos colegas, cada um que
passava acenava-lhe e perguntava algo que eu entendia como sendo ”pra onde
levas esse branco ? ” ou “que fazes com ele aí dentro ? ”
Algumas dezenas de quilómetros depois de apeado e
agradecer ao agradável motorista do camião, aconteceu o primeiro furo …
Não tardou em aparecer um jovem com cerca de 20 anos,
com roupas de ciclismo, parecia um normalíssimo ocidental em fim de semana ,
montado numa bicicleta de montanha nova,
entendi que ia na direção de Lanzhou, transportou a câmara de ar até uma “oficina” improvisada, ali perto, junto ao passeio, consistia numa bacia com agua, alguns remendos
e uma bomba de ar manual, apesar da minha insistência este recém chegado amigo
não me deixou pagar o arranjo, senti-me aliviado por isso, tinha acabado de
chegar a este país (diferente de muitos outros) e ainda não confiava na
honestidade que comprovaria mais tarde e me entregaria de alma e coração
a estes maravilhosos povos da China.
Não nos separámos, durante as 48 horas
seguintes, nem para respirar. Sufocava-me e penso que também ele sentia isso, pela
azáfama que demonstrava em procurar alguém que falasse inglês, nas escolas
básicas onde não obtínhamos grande ajuda, nem sequer por parte dos professores,
com um inglês muito primário, apenas nas universidades conseguia manter alguma
conversação com os docentes, que manifestavam uma curiosidade enorme pelo
ocidente e pela minha viagem, mas apesar disso, nunca consegui compreender o
meu jovem amigo, acerca do que ele desejaria comunicar-me, pensei até que não
me queria como companheiro de viagem mas, quando eu me afastava
propositadamente e também porque ele pedalava devagar, este pedia-me para
abrandar, de forma que fui afrouxando a minha vontade de fazer muitos
quilómetros e as horas passavam-se sem que diminuísse a distancia à cidade mais
próxima.
Pernoitei no minúsculo “bivouac” azul, (também o meu
amigo chinês transportava uma exígua tenda) no meio de fenos empilhados, numa aldeia antiga e depois de termos solicitado aos locais para descansar.
Foi uma festa para os miúdos, não estavam habituados
a ver estrangeiros e seguiam todos os meus gestos sem incomodarem, estava
habituado noutras paragens a ser atacado literalmente por enxames de crianças,
pilhado até com a indulgência dos familiares, nada disso se passava na
pacatez desta China simples e rural.
No dia seguinte, muito cedo detivemo-nos numa pequena
vila, apenas com uma rua bastante poeirenta, serviam-se refeições sob frondosas
árvores, fui obsequiado com um pequeno almoço, servido a preceito num saco de
plástico pousado uma málaga jamais lavada, soube bem estar sentado em plena rua
sorvendo, como é habito nestas paragens, aquela sopa picante, adivinhava-se o
sabor pela cor avermelhada e objetos desconhecidos, repugnantes pairando no
caldo, mas foi aconchegante, tinha fome e
fosse qual fosse a refeição, era bem vinda.
Adivinhavam-se as feições tibetanas em alguns
peregrinos à medida que me ia aproximando do elevado “plateau”, pareciam-se
com os caminhantes de Santiago de Compostela que conhecera noutros tempos, numa
geografia de rostos distintos.
Era noite quando chegámos à descomunal cidade de
Lanhzou e de novo à poluição, o caos no trânsito exclusivamente automóvel, as
ruas apinhadas de gente que me olhavam como se fosse eu um extraterreno saído
dalgum “OVNI” em talhe de bicicleta.
Esta, como todas as cidades Chinesas que conheci,
parecia cintilar de tanta luz e néon vista de longe, reparei nos rostos
franzinos dos camponeses encostados aos vidros embaciados dos autocarros,
boquiabertos com tanta ostentação, diz-se por aqui “para inglês ver”, neste
caso será mais para uso doméstico, porque nas ruas detrás, no mais central lugar
da cidade mas escondidas aos forasteiros, eram o mesmo amontoado de escombros,
lixo, falta de esgotos e ruas sem asfalto, cada morador tem de usar
lanterna para não cair numa vala cheia de ratos, num buraco onde é queimado
diariamente o lixo ou num vazadouro de esgoto caseiro.
Exibiu-me aos estranhos amigos “teenegers” e a uma
irmã que felizmente falava bem inglês, trabalhava na versão Chinesa do Kentucky
Fried Chicken, eu sabia previamente não haver esta marca de franchising na China,
mas a imitação era perfeita, além disso eu detestava frango,
Disse-me que não viviam juntos, depressa compreendi
porquê, os pais eram separados e o rapaz ficou no “dark side of the moon”, com
um pai sempre alcoolizado, numa casa de duas divisões e extremamente suja,
discutiram durante algum tempo,ela tentava, penso eu, convencer o irmão a
procurar um hotel para mim em lugar de me levar para casa dela,
A resposta foi arrogante no primeiro hotel onde
entrou pedindo informações - não pode de forma alguma, ficar em hotéis para
Chineses, foi então procurar um hotel exclusivamente para estrangeiros, saiu
impressionada e com as mãos na cabeça, o preço por cada noite era escandaloso,
350 yuan’s,( 35 Euros) quase o terço do salário de um mês de trabalho na China.
Resolveram que ficaria na casa do pai dele,
ofereceram-me jantar numa esplanada em plena rua, espetadas de carne de cão no
churrasco, acompanhadas de cerveja, muita cerveja, sentia-me vulnerável e ainda
mais bebendo assim tanto, depois de um dia inteiro em jejum, mas confiei neste
bando de jovens que anunciavam nos tradutores dos telemóveis como sendo Hackers
(perguntei-me se entenderiam o significado do termo)
Viviam sozinhos, em pequenas lojas de 4/5 metros
quadrados apenas com um computador, um LCD na parede, caixas usadas de comida
pré-cozinhada, amontoadas a um canto, despedimo-nos tarde e fui para a casa do
meu anfitrião.
Ainda tentei lutar contra o sono, estava sozinho e
indefeso numa casa anónima, numa incógnita cidade do interior da China, onde
poderia desaparecer sem deixar rasto.
O rapaz dormiu
no sofá e cedeu-me uma cama coberta de uma esteira em bambu, muito mais tarde é
que descobri que a cama tinha duas utilizações, era usada como mesa quando
vazia dos moradores noturnos, sendo assim, sem retirar a esteira, eu dormira em
cima da mesa.
Acordei cedo e foi como um bálsamo a partida de novo
e sempre para Ocidente, desta vez em comboio como me foi “imposto” pela irmã do jovem que me cedeu a cama para dormir, fui em direcção a Xining, capital da
província de Quighai e terras dos grandes lagos sagrados e salgados.
Fez-me esta prometer que não iria de bicicleta subir
aquelas montanhas tão íngremes que se avistavam do cento da cidade,
dizia, apontando os penedos escuros, ao que eu concordei, faltavam,
(pensava eu,) muitos quilómetros e nada melhor que o conforto de um comboio.
Os jovens são imensos na China e o vagão estava
apinhado deles, viciados em telemóveis, ainda mais que no ocidente, d’entre
estes salientava-se especialmente um pelo entusiasmo radiante e a facilidade
com que chamava a atenção das belas raparigas, de quase todas elas, pensei
que se conheciam mas mais tarde descobri que eram apenas companhia de ocasião.
Quando saí do comboio veio correndo ao meu encontro e
coloca-me um pin com uma ave pernalta desenhada dizendo ser da “sua”
organização, que eu soubesse todas as “organizações” na China são
governamentais, mas não voltei a pensar no caso, não fosse voltar a encontra-lo
por mais duas vezes nos cerca de 2.500 quilómetros que palmilhei deste país,
coincidências? …
A vila de Daotanghe situa-se numa encruzilhada de
duas estradas sempre com a tradicional e monumental praça ornamentada com
alguma obra de arte arrogante, regimental
e naturalmente desprovida de
sentimentos.
As vendedoras na rua puxavam-me os cabelos das pernas
quando passava, apeado da bicicleta, junto ao lago Quinghai,
uma jovem vem ter comigo e passa-me a mão pela cara para sentir a minha barba
eriçada, algo que não estavam habituados a ver ou sentir, nem eu a ser
assediado desta forma por quem recusava um simples beijo de despedida quando eu por vezes tentava ser simpático com o sexo oposto.
Nessa noite fico num hotel mas inutilmente procuro
pelo chuveiro ou o banheiro de que tanto precisava, o quarto tinha apenas o
tamanho do minicolchão e do meu corpo semiencolhido , na casa de banho
pública havia uma pirâmide fecal petrificada e nauseabunda sob o respetivo buraco, nas
traseiras da aldeia onde toda a população fazia as necessidades quase a céu
aberto.
Se havia ascendido por uma estrada interminável
desenhava-se para os dias seguintes o pior cenário possível, descobri tarde
demais que me tinha enganado no itinerário por não ter comprado mapa, em vez de
usar o percurso da direita (Oeste) em direcção ao lago Quinghai, atravessei
algumas centenas de Quilómetros de montanhas para Sul (para Gonghe), mais outra
poeirenta e desagradável cidade.
Continuei por dias consecutivos, dormindo em “bivoac”
e pedalando por subidas abruptas em altitudes de perto de 4.000 metros,
agarrado á traseira de camiões, carregados de asfalto e pedra, para a
construção das imponentes vias de acesso vitais a China, talvez nem tanto ao
povo “Uigur”, maioritário ainda na província de Xinjiang (por poucos anos)
auto-estradas sem tráfego significativo,
a não ser tanques de guerra, carros antimotim
e policia, muitos polícias…
A fresquidão das madrugadas e os espaços sem termo do
altiplano eram um calmante para a alma, embora de resto, os dias quentíssimos,
tendo como única sombra a que eu próprio criava, os sons do tráfego, as
omnipresentes buzinadelas nas cidades e o calor torturante da altitude tinham
um efeito negativo que eu tentava contrariar, antecipando um final bucólico
para esta odisseia, nas serras do Quirguistão, em Aslam, com cascatas e jovens
brancas e graciosas, tomando banho nuas nas águas geladas das montanhas em
Aslam, nas mágicas florestas da Ásia Central.
Substituíram nesta área as duas únicas estradas
existentes (uma em direcção a Kashi e outra para Golmud e Tibet) por
autoestradas, sem maneira nem forma de circular sem passar por camaras de
vigilância, muitas vistorias policiais e portagens colocadas estrategicamente
para controlar toda uma vasta região que deseja tão só e simplesmente a
independência da DURA tirania Chinesa.
Acerquei-me da pior maneira possível do lago
Quinghai, tinha percorrido uma distância três vezes superior à necessária para
o avistar, mas foi uma felicidade grande ao ver esta enorme mancha azul-clara
que eu pensava ser água doce.
Mais uma vez o meu provisional “anjo-da-guarda”
apareceu: era o mesmo, sempre presente chinês gorduchinho e afável do comboio
em Xining, apontou o “pin” colocado por ele próprio, alguns dias antes, nessa
mesma t-shirt; era fácil não me separar dela, pois tinha comigo apenas duas
camisolas, a de mangas curtas que tinha vestida e outra de mangas compridas
para ocasiões mais formais, jantar num restaurante, por exemplo.
Impressionou-me a avistamento de iaques pastando nas
margens deste lago que parecia mar, nómadas como os seus guardiões, em
coloridas tendas, de rosto e corpo completamente tapados devido a intensidade
dos raios solares, alguns espreitando no fundo dos panos e todos eles vindos
dos confins dos séculos continuavam iguais a si próprios.
Vi peregrinos mandando ao ar papeis com cavalinhos de
vento
impressos, monges que se deliciavam quando me sentava
gesticulando, no meio deles, tive encontros casuais com estrelas, dormindo na
erva de vida breve mas depois vinham as angústias dos espaços preenchidos de
nada
e a incerteza dos percursos sem fim, tive a sensação
de voar nas descidas dos planaltos de estepe até ao inicio dos desertos cinza
ou de fazer parte das admiráveis pinturas chinesas quando as árvores nas
estradas tocavam o chão e os pavões se passeavam pelas tradicionais aldeias.
Hexiang, a cidade das bicicletas e encruzilhada das
estradas, 109 para o Tibete 315, para ocidente.
A segunda escolha revelou-se depois errada apesar de
ser a cidade mais próxima e onde poderia ter acesso a dinheiro corrente dado
que o único banco além dos serviços postais Chineses desta localidade me
negarem trocar ou levantar em ATM.
Averiguei no multibanco, precisava de seis dígitos em
lugar dos normais quatro, do código secreto, na parede dos bancos em letras
vistosas mostravam os cambio do euro e do dólar, mas era proibido a
estrangeiros, apenas no banco da China era permitido e em mais umas poucas
entidades certificados e vigiados pelo estado.
Avistei no outro lado da ruas, três transeuntes, um
rapaz e duas jovens, pareciam estrangeiros pela roupa lavada e por usarem
mochilas, falavam inglês, vinham de peregrinação desde Lhasa e foi com eles que
voltei a tentar cambiar euros, foi a mesma resposta,- não temos autorização
para cambiar moeda a estrangeiros.
Comecei a ficar preocupado, disseram-me que na
próxima cidade a cerca de 80/100 km pela estrada 315 haveria um banco com ATM
onde poderia fazer o cambio ou levantamento de yuanes em ATM.
Este acolhedor grupo de peregrinos de Lhasa
aliviou-me da fome com mais uma refeição gratuita num simpático restaurante,
depois continuei a minha viagem na direção que me tinham indicado como sendo a
mais próxima para conseguir “cash”.
Jamais teria seguido pelo caminho da direita, não
fosse esta emergência, mas como algures esses dois percursos entroncavam numa
única via em direção a Kashi, pelo coração do deserto do Taklamakan, foi por
esta que continuei rumo ao final abrupto da viagem.
Halihatu ou Haixi eram as localidades a alcançar
nessa tarde na região autónoma de “wulan country”, a questão era a de vencer
100 km numa tarde que já ia avançada, percorri uma maldita estrada 315 com “up grade” de autoestrada,
perguntei na
portagem monumental, se poderia passar de bicicleta, falávamos por gestos, como
era habitual assim como era a já banalizada foto, que os portageiros e polícias
de serviço lhes apeteceu tirar comigo, vinham um por um, perfilavam-se em pose
e com o tradicional “V” de Vitória feito com os dedos indicador e médio
espetados , triunfo o deles, fracasso o meu.
Ainda não percebo o significado deste gesto mas
tornou-se trivial um pouco por todo o mundo, não creio que neste pais, tenha
alguma simbologia próxima ou longínqua ao filme homólogo. ou mesmo com um outro
gesto de um só dedo, neste caso o médio bem levantado, perante os
agressivos e importunos apitos
sem me parecer que conhecessem por aqui o alcance deste gesto.
Não me parecia muito mundano o sitio onde decidi
ficar, numa placa castanha dizia : Dulan
Temple
Eram seis da tarde e ameaçava chover, por essa razão fui
perguntar por refúgio e uma refeição quente, na pequena subida em terra batida
que dava diretamente acesso ao mosteiro fui abordado por um individuo que eu
julgava ser um monge sem a tradicional veste
bordeaux e amarela.
Perguntei por gestos se podia dormir no mosteiro,
questionou se possuía algum dinheiro e quanto ao que eu respondi que tinha
muito pouco, apontou que deveria seguir a estrada e escreveu no chão a
distancia até á cidade mais próxima, mostrei-lhe apontando o céu, que ia chover
e não poderia continuar
Pousou um braço sobre os meus ombros, parecia dada e
sincera a ajuda e vieram-me as lágrimas aos olhos nesse momento.
Encaminhou-me para a entrada única do mosteiro onde
se podia ler “POLICE” e mudando de semblante inesperadamente, mostrou que
queria a minha identificação, apresentou-me um pequeno cartão, com uma estrela
vermelha num canto, talvez revelando o seu estatuto na nomenclatura do estado.
Ficou de mão
estendida numa atitude agressiva, olhando-me nos olhos e esperando que lhe
apresentasse o passaporte.
Revistou-me a mim e a toda a bagagem, entretanto
comecei a ser rodeado de mais autoridades. todos sem fardamento, principiou um,
mais jovem por usar o tradutor do telemóvel, convidou-me amavelmente para
visitar o mosteiro enquanto ia fazendo perguntas, estranhamente não
ultrapassámos as primeiras escadarias do
templo, fiz algumas fotos deles que depois foram apagadas assim como todas,
onde figuravam militares, fotos do Dalai -Lama em quadros de parede obtidas
noutros mosteiros ou material bélico e estranhas “ambulâncias” (com o sinal da cruz vermelha)
com canhões de água no topo, que circulavam nas estradas a caminho de Xinjiang.
Olhei as queimaduras profundas nos braços e nuca de alguns monges, pareciam feitas com
tições ou cigarros acesos, fiz gestualmente um reparo, mas não obtive
explicação, eles depressa se cobriram, pareceu-me ver medo nos seu olhos
provavelmente devido a minha presença.
Não obtive qualquer visita guiada, quando voltei ao
austero gabinete da esquadra, mandaram sentar-me, perguntaram várias vezes se
estava sozinho, se tinha fome (nunca trouxeram comida tal como o povo Chinês) e
o que fazia ali…sempre com grandes gestos e uma inquietação que eu não
compreendi a razão, como se fosse algum convidado inoportuno, pareciam não
saber o que fazer comigo.
Examinaram o visto cuidadosamente talvez julgando
tratar-se de falsificação.
Começou a chover e foi sob chuva, com muitos
relâmpagos que me colocaram num carro, pareceu-me um “Lexus” castanho, num
modelo diferente dos europeus, sem matricula.
Saímos para o ATM na cidade, a fim de levantar algum
dinheiro, tive medo ao usar o cartão rodeado de tantos agentes (possivelmente
da polícia) mas foi um alívio ter acesso a divisas correntes,
No regresso detivemo-nos numa esquadra, aí confirmei
serem polícias sem uniforme, falaram durante uns minutos enquanto me olhavam pelo canto dos olhos e perguntei
em inglês :
-“Am I arrested ?”
Responderam com o tradutor do telemóvel
-“not yet !”
Escreveu que tinham vindo confirmar o meu visto mas
um relâmpago tinha caído diretamente em cima do computador da esquadra
Por fim escreveu o jovem polícia no telemóvel
tentando ser simpático:
-“you're good !”
Não entendi se teria havido engano na tradução, ou
queria transmitir que eu era boa pessoa, com bom carácter ou apenas um homem de
coragem, audácia que me faltou pouco depois.
Voltámos ao mosteiro onde o porção de polícias tinha
aumentado substancialmente, estavam na pequena sala cerca de doze pessoas entre
fardados e não fardados, isso dividiu-me.
-sentir-me-ia apavorado ou se alguém finalmente havia
reconhecido da minha importância.-
As atitudes tinham-se tornado mais agressivas, por
cada tentativa minha para me erguer da cadeira colocada no meio desta chusma de
gente era empurrado pelos ombros e reprimido, obrigado a ceder perante a
violência visível nos rostos destes homens, encostavam os olhos aos meus numa
postura de “posso e mando”.
De novo as mesmas perguntas, se estava sozinho etc,
nesse momento entra uma jovem que me disse em inglês- não ser bem vindo em
Xinjiang,
- Iria ser transportado, para minha segurança para um
“hotel de turistas”,
ás minhas custas e no dia seguinte iria ser posto num autocarro para ser
extraído (foi essa a palavra usada) desta província.
Insurgi-me com vigor
e levantei-me e ergui a voz dizendo:
-tenho
autorização oficial, dada pela embaixada em Lisboa para atravessar este
território, o meu voo está reservado em Bishkek no Kirguistão, esta é a única
via de acesso da China ao Quirguistão.
Não serviu de nada e só piorou a minha delicada
posição, houve alguns berros que não entendi, nem a tradutora lhe apeteceu
devolver-me o significado
Disse-me simplesmente:
“-Aqui governamos nós”
“-podes ir para o Tibete mas não te é permitido
continuar nesta estrada em direção a Kashi”
Sabendo eu da dificuldade de passar sozinho, sem
fazer parte duma viagem organizada com “guia oficial” para o Tibete, restava-me
voltar ao ponto de partida, a Xi’an….
Mas os imprevistos não acabaram…
(continua)