Transhumante Parte 3 (Diário de um Louco)
Os primeiros orvalhos do Outono já se faziam
sentir nas planícies madrugadas de Espanha e vestiam-se de ruivo nas espigas e
nas vistas da janela do comboio/Hotel
Lusitânia. O Transhumante despertava de uma noite mal dormida em solavancos e
guinadas para mais uma etapa nos Pirenéus, depois de chegar a Madrid ainda
teria de percorrer outras estações e outros comboios mais modernos e rápidos que
o levariam até onde tinha terminado no ano anterior, em Ainsa, S. Joan de Plan/Biadós.
Um táxi colectivo despejou-o já noite, no fim da
estrada de alcatrão que tão bem conhecera no ano anterior (2010), sabia a
distancia que iria percorrer a pé até ao refúgio, (cerca de vinte quilómetros)
mas não se estaria aberto, dada a proximidade do outono e, para aumentar a
incerteza não tinha jantado ainda, nem comida para a viagem e para se lançar nos caminhos
costa a costa do GR 11.
Ainda ponderava na lucidez do seu estado mental , que o levava a fazer este disparate de atravessar os Pirenéus do Atlântico
ao Mediterrâneo quando as luzes de um veículo-tod’o-terreno iluminam a estrada, - iam na mesma direcção e tinham uma valiosa informação – O refúgio estava aberto
- tinha transporte e também onde “senar” jantar e dormir nessa noite, começara bem
esta aventura de loucos.
Acordou “com as galinhas”, mal se avistavam os
caminhos ténues da montanha , felizmente o bom tempo presenteava ainda um
doce fim de Setembro que mais parecia primavera e nas pernas do Trashumante, as
primeiras horas decorreram gloriosas, corria como um louco, esquecera tudo
quanto deixara para trás, respirava o silencio do nada numa terra inundada de
loucura.
Recordava as manhãs longínquas de quando iniciou
dois anos antes em Irun esta rota e lhe parecia estar tão distante o final, no
Mediterrâneo em Cap de Creus, mas afinal já tinha feito metade, estava agora
percorrendo a parte média ou central, mas também a zona mais alta da
cordilheira Pirenaica, onde as tempestades poderiam ser mais perigosas e as
etapas mais dolorosas com desníveis consideráveis(entre os 900 e os 2.700
metros).
Conhecia grande parte destes lagos de montanha e
parques naturais paradisíacos, melhor que o resto da cordilheira, mas durante
todos os anos que deambulou por aqui, nunca imaginara que pudesse passar um dia
correndo de Norte a Sul ainda menos como lobo ou urso solitário, quase sem
roupa para mudar, sem comida para as jornadas nem apoio logístico ou mesmo
transporte próprio para fazer, depois de terminadas as jornadas, os 1.100 km
que separavam a montanha, do conforto da casa e da família, da normalidade.
Era uma rematada loucura estar correndo os 800
km da rota Pirenaica não sendo um habitante local, habituado e melhor
conhecedor da região, para estes bastavam oito dias, como lhe disseram ser o
“record” da travessia, mesmo assim estava determinado a usar apenas 12 /13
dias, talvez poucos o conseguissem.
Na porta do refúgio de Estós, num papel escrito a
pressa, dizia que o guarda voltaria próximo do meio-dia e meia hora, tentaria
almoçar mais tarde, apesar do estômago já o avisar, esperava não perder o
trilho ou perderia também as refeições dos dias seguintes.
Quando descia o interminável valle de Estos interrogou
uma família de camponeses locais que se encontravam colhendo “setas”
(cogumelos), perguntou se estaria na direcção certa para Andorra e mais uma vez
ficou desassossegado perante a resposta, segundo eles estaria completamente
fora de rota e era uma loucura, segundo eles, aventurar-se assim, em distancias tão absurdas e
sem saber onde estava, nem por onde ir, diziam eles que Gr 11 eram todos os
GR’S, pois todos tinham o mesmo nome GR 11.1,GR 11.2 etc.
Revelou-se mais uma vez ser desnecessário pedir
informações a quem não entendesse as razões de outros para quebrar as próprias
peias mentais.
A meio da tarde um oportuno “camping” ainda
aberto nesta época, junto da estrada principal que conduz a França pelo túnel
de Bielsa, proporciona-lhe a tão desejada refeição com cerveja para pacificar a
sede, já se faziam notar no céu as nuvens negras da trovoada que aí vinha.
Um estradão largo e monótono condu-lo durante toda
a tarde a uma portela que tardava em chegar até que, pelas 17 horas encontra
duas jovens moças, Ivone e Elena a porta de um refúgio não guardado, acompanham-no
e ajudam-se mutuamente a superar o medo da tempestade e dos sonhos em que um
urso dourado, o devora devagar até de madrugada.
Tal como noutra etapa em que Miguel, o S. Miguel
“da porta do convento”, foi um considerável apoio depois de um pé torcido, aqui
Ivone e Elena, tiveram também um efeito reconfortante perante uma noite feita
dia com os “flashes” de tantos e tantos relâmpagos apenas com um mero segundo
entre a luz e o som, nos intervalos via aparecer perfilados “hobbits“ ,”brujas”
e outras personagens surreais.
O dia seguinte ainda seria mais alucinante que a
noite, o ar estava límpido como sempre fica na bonança depois da alguma tempestade
e a correria pelo monte abaixo embriagava-o, o vento fustigava-o no rosto
transpirado e continuava a correr indiferentes as dores nos joelhos, as bolhas
nos pés, ao cansaço de todos os músculos, alguns até que nem ele sonhava
existirem.
A meteorologia adiantava neve para os próximos
dias em cotas acima de 2.500 metros e ele tinha de ser rápido pois apenas teria
o dia seguinte para chegar o mais próximo possível de Andorra.
Tentou alcançar o refúgio de Colomers, já seu
conhecido mas em vão, ao chegar a “Restanca”, de novo os guardas do refúgio o
tentam convencer do perigo grande que é continuar, de noite e sob a tão
terrível tempestade regressada novamente durante a tarde e num caminho mal
balizado nessa zona. Ele convence-se a deixa-se ficar perante uma promessa de jantar,
cama seca e do primeiro banho em muitos dias.
Mais uma vez acorda com pesadelos, noite cerrada,
para tentar fazer render o último dia antes do nevão,antes das pistas de montanha
ficarem tapadas pela neve. Surpreende-se da forma física que tem aumentado
desde que chegou e da vontade anímica de correr por entre os caminhos tortos
dentro do parque de Saint-Maurici/Encantats.
Chega a Espot ainda cedo, resolvido a não continuar
mais além, o céu prometia neve mas sentia a sensação “Dolce” de dever cumprido.
Andorra era já ali ao virar, no total das 3 etapas tinha percorrido 2/3 dos 800
km que separavam o Atlântico do Mediterrâneo pelo trilho do Gr 11, recomeçaria
no próximo ano por Esterri D’Aneu, agora já por Barcelona/Manresa, mas de avião,
a viagem de 24 horas comboio/autocarro para superar os 1.100 km entre casa e o
objectivo era mais cansativa que a travessia da montanha grande.
Tinha um sonho por realizar entretanto, pedalar
13.000 km de Xi’na a Istambul por entre etapas e alucinações, desertos e visões
de outros mundos mais ou menos paralelos. para ele...
Jorge Santos (09/2011)